O
fato do coronavírus ter iniciado seu alastramento na China provocou uma série
de suposições preconceituosas, especialmente xenofóbicas, uma vez em que muitos
possuem a concepção de que chineses comem “tudo o que se move”, referência a
seus hábitos alimentares que seriam exóticos. Nisto, faz-se o enlace da origem
do corona partindo de um animal selvagem, que inicialmente acreditou-se serem
morcegos. Entretanto, nesta perspectiva, por vezes acabamos não nos lembramos
de olhar mais atentamente para nossos próprios hábitos de consumo, os quais
incluem animais silvestres/selvagens, apresentando números mais alarmantes do
que a China. Ademais, temos um elevado índice de desmatamento, combinação
perigosa para o surgimento de novas doenças.
Retomando
ao início do que seria uma pandemia, o Covid-19 é parte de uma grande família
de vírus responsável por causar infecções respiratórias em humanos e animais,
das quais se incluem as já conhecidas Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS)
causada pelo vírus SARS-CoV e a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS)
causada pelo MERS-CoV e então, o atual Covid-19 causado pelo SARS-CoV-2, sendo
seu primeiro caso identificado em dezembro de 2019, Wuhan, China. Entretanto,
ainda não há certeza sobre o como o paciente zero se infectou.
O
site da Organização Mundial da Saúde reitera que a transmissão do Covid-19 se dá de humano para humano, assim
como que outros vírus da família do coronavírus, e outros tipos de vírus, tem
origem em animais.
Diversas
informações foram obtidas através do sequenciamento do genoma e a partir disto
puderam ser realizadas comparações com os outros seis tipos de coronavírus
capazes de infectar humanos (SARS, MERS, HKU1, NL63, OC43 e 229E) apresentando
maior proximidade com os do grupo SARS, que também infectam outros animais. Então
o foco se deu na proteína spike,
moléculas responsáveis por viabilizar a entrada do vírus na célula do
hospedeiro. Esta demonstrou mais semelhanças dentro do grupo da SARS dos
coronavírus presentes em animais, não dos que infectam humanos.
Também
se destacou que o Covid-19 não é um vírus produzido em laboratório, pois sua
proteína spike é altamente especializada em invadir células humanas, de maneira
que se fosse laboratorialmente manipulada não seria, onde seriam utilizadas estruturas de outros vírus que já
são conhecidos, ou seja, é um fruto da seleção natural.
Então
como teria chegado o vírus até os humanos? Uma hipótese é que tenha sido
transmitido dos morcegos diretamente aos humanos, ou indiretamente tendo o
pangolim como agente intermediário. A hipótese da transmissão ter os pangolins
como agente intermediário é mais
forte devida a semelhança entre a genética do vírus encontrado em humanos e em
pangolins. Amostras coletadas de pangolins malaios apreendidos de tráfico a 3
anos atrás apresentaram vírus de coronavírus semelhantes ao SARS-CoV-2, assim como
demonstraram as amostras de pangolins de diferentes locais do território
chinês. A referida semelhança gira em torno de 85,5% e 92,4% não contendo,
entretanto, as características necessárias para acoplar em células humanas,
existindo a possibilidade de a característica ter sido adquirida dentro de um
hospedeiro humano.
Assim, voltamos a questão inicial, a xenofobia
e consumo de animais silvestres/ selvagens. Pouco é lembrado, entretanto em
diversas regiões brasileiras, especialmente as mais pobres e rurais, assim como
ocorre na China, as pessoas caçam e se alimentam de tatus (parentes dos
pangolins), tamanduás, gambás, lagartos, macacos, aves e outros. Sendo esta
prática antiga, um cenário não muito diferente da China. O biólogo Hugo
Fernandes estudou a caça no Brasil em seu doutorado, afirmando a documentação
de 344 espécies como alvo de caça “embora
as estimativas apontem que esse número pode atingir mais de 525, sendo 46%
aves, 42% mamíferos, 11% répteis e 1% anfíbios”. enquanto em comparação uma
análise de mercados de animais provindos de caça da China, foram encontradas a
venda de 97 espécies, das quais 51% são répteis, 21% aves e 10% mamíferos.
Entretanto, é
importante destacar que a caça, seja ela legal ou ilegal, existe em todos os
continentes e os mercados chineses não são únicos, sendo que há registros de
mercados semelhantes na América, nos EUA e Brasil e estes também podem servir
de ponto inicial de dispersão de uma nova doença. Porém, este tipo de mercado é
apenas uma das maneiras a partir da qual pode ocorrer a disseminação de novos
surtos. A exemplo disto temos uma doença da família dos coronavírus, a MERS,
que teve sua origem na criação de camelos no Oriente Médio, sendo estes criados
para o transporte, consumo de leite e por vezes também servem para o consumo de
carne. A gripe aviária teve origem na criação de aves para consumo, assim como
se deu com a gripe suína com a criação de suínos para consumo. A gripe
espanhola, por sua vez se originou em meio a 1° guerra mundial.
O destaque sob
o Brasil recai quando tratamos das mudanças climáticas e degradação do
ambiente, uma vez em que no país estes problemas vêm se alastrando e contribuem
para o surgimento e também dispersão de novas doenças. O degelo também pode
trazer à tona vírus adormecidos, sendo este processo acelerado pelo aquecimento
global. Vírus como a Dengue, Zika e Chikungunya são arbovírus e sua dispersão é
facilitada pelo conjunto das más práticas de desmatamento e precariedade de
saneamento básico que acometem nosso país.
E onde isso tudo nos leva? Simplesmente ao fato de que novos vírus podem se originar em qualquer localidade, sob diversas condições que servem de gatilhos, sejam elas o consumo de animais selvagens, precariedade no saneamento básico, degradação ambiental, aumento populacional….. Assim, não podemos nos manter no estigma xenofóbico e hipócrita de julgar e condenar os países e costumes asiáticos, a discussão deve ser pautada em evidências e na racionalidade, e não em um preconceito, mesmo que este se mostre velado.
Referências
FERREIRA, Hugo Fernandes. A caça no Brasil: panorama histórico e atual. Tese (Doutorado em Ciências Biológicas) - Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2014. 466p. Disponível em:https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/8221
_World Health Organization. Q&A on coronaviruses (COVID-19). Disponível em:https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/question-and-answers-hub/q-a-detail/q-a-coronaviruses
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